TRABALHAR PRA QUÊ?



TRABALHAR PRA QUÊ?
 Charles morava numa comunidade pobre do Rio de Janeiro, era casado, tinha um filho pequeno e a mulher estava grávida. O homem nunca tinha trabalhado com carteira assinada, pois dizia que o salário-mínimo era muito pouco e não dava para criar a família. Diariamente ele chegava com algum dinheiro em casa e a mulher sempre questionava:
- De onde veio esse dinheiro?
- Do meu trabalho, hoje eu fiz um biscate lá na outra rua.
A mulher sempre aceitava a explicação, porém sabia que o digníssimo esposo servia esporadicamente ao tráfico local.
- Charles, eu estive pensando muito e decidi que você vai ter de arrumar um serviço de carteira assinada.
- O que? Espantou-se o marido. Pra ganhar salário mínimo?
- É! Vai ganhar salário-mínimo, vale-transporte, vale-alimentação, vale-cultura, plano de saúde e outras mordomias previstas na lei.
- Ué! Tem direito a isso tudo?
- Pois é, até auxílio-reclusão, se você for preso.
- Vira essa boca pra lá mulher, quem disse que eu vou ser preso? Eu sou trabalhador.
- Sei, falou a mulher com um olhar desconfiado.
- Tá legal! Se você fica feliz, eu vou arrumar um emprego.
Assim, Charles saiu em busca de um emprego. O primeiro que viu foi de auxiliar de pedreiro.
- Tá louco? Trabalhar oito horas por dia no sol e carregando peso pra ganhar uma merreca.
O segundo emprego que apareceu era de cabeleireiro.
- Não, eu não tenho jeito pra coisa. O que o pessoal lá da comunidade vai pensar de mim? Eu sou macho, cabeleireiro é coisa pra boiola.
Um anúncio na parede da boate oferecia uma vaga: precisa-se de dançarino.
- Nem pensar, só sei dançar pagode.
Depois de muito andar, Charles passou por um mercado e tinha uma placa com uma oferta de emprego: Precisa de repositor
- Que raios é repositor? Acho que vale a pena perguntar.
Muito desconfiado, o homem entrou no mercado e perguntou onde resolvia sobre o emprego que estavam oferecendo. Entrou por uma porta e se acertou com o gerente, Charles descobriu que seria fácil ser repositor, começaria naquele mesmo dia.
- Por onde andou? Quis saber a mulher assim que ele entrou em casa tarde da noite.
- Tenho novidade, estou trabalhando de carteira assinada.
- Jura! Gritou a mulher com um sorriso de orelha a orelha.
- Comecei hoje mesmo.
- E onde você arrumou trabalho?
- Naquele mercado que tem no outro bairro, falou o homem cheio de orgulho.
- E o que você faz lá, é gerente?
- Quase... Na verdade estou a um passo de ser gerente, eu sou repositor.
- Nossa! Repositor? Até que finalmente você desencalhou, o primeiro trabalho e já como repositor.
- Mas é por pouco tempo, logo logo vão reconhecer o meu talento e me promover a gerente-geral.
Agora tudo estava em paz naquela casa, o marido trabalhava e com carteira assinada. Aquela noite transcorreu como uma segunda lua de mel.
Durante a primeira semana de trabalho, Charles viu que ser repositor não era tão fácil assim, até porque ele não tirava o olho das caixas, não das mulheres que trabalhavam, mas do dinheiro que entrava na caixa registradora. Muito observador, ele notou que determinada hora da noite um sujeito magro, baixo e de bigode, passava em todas as caixas recolhendo o dinheiro. Não era pouco dinheiro, pois o homem levava tudo em um saco seguindo por um corredor até a sala da gerência onde ficava o cofre.
Todo dia era a mesma coisa, recolhia todo dinheiro, na mesma hora, o mesmo homem, o mesmo saco e o mesmo trajeto. Charles pensou que seria fácil alguém tomar o saco daquele baixinho. A mente do novo empregado fervilhava quando via aquele saco de dinheiro, mas ele não sabia quanto tinha dentro. Se tentasse alguma coisa, deveria ser por muito dinheiro.
Chegou o dia de pagamento. Todo mundo feliz. Charles sorria com todos os dentes que tinha. Primeiro pagamento... Faria uma festa, um churrasco ou quem sabe levaria a patroa para comer fora. Quando chegou sua hora de receber o salário, veio a decepção: desconto disso, desconto daquilo, desconto também de um outro.
- Caramba! É só isso que eu vou ganhar? Quase falou Charles para o seu chefe.
Desiludido, ele enfiou o que sobrou do salário no bolso e foi para casa. Durante o trajeto para sua humilde residência ele pensou: “tenho de saber quanto é recolhido naquele saco”.
No dia seguinte o novo empregado se aproximou da operadora de caixa que estava tomando café no intervalo e sedutoramente puxou assunto:
- Eu tive observando que você é a que mais trabalha neste mercado, se eu fosse o gerente mandaria as outras caixas embora e só deixava você, tenho certeza que você dava conta. É lógico que aumentaria também e muito o seu salário. Você é muito eficiente.
- Você acha? Eu só faço o meu trabalho, se bem que todas as outras fazem corpo mole para o serviço, assanhou-se a funcionária com o elogio.
- Também acho, você é muito rápida.
- Obrigada!
- Você chega a vender quanto por dia, uns dois mil?
- Dois mil? Tá brincando? Em cartão eu vendo uns nove mil e em dinheiro uns dois a três mil por dia. Nos dias bons isso aumenta bastante, disse a moça inocentemente.
Charles sorriu para a moça, mas sorriu ainda mais calculando quanto iria naquela sacola. Podia chegar por volta de uns sete a dez mil reais em dinheiro e tudo dentro da sacola. Era mais que um ano de trabalho de repositor.
O plano estava formado, no melhor dia do mês aquela sacola mudaria de mãos e não iria para o cofre.
Primeiro Charles dez um teste, iria até a gerência na hora do recolhimento e cruzaria com o magricela no corredor, assim ele teria noção do que fazer para tomar a sacola do cara. Foi tudo muito simples, fácil e ninguém desconfiava de nada. Charles cruzou com o homem no corredor sem problemas e sem nenhuma segurança. Agora era aguardar o dia certo e cumprir o plano.
Durante o café da operadora de caixa, Charles voltou a atacar:
- E aí? Parece que hoje é um daqueles dias de mais movimento.
- Se é? Tenho certeza que é o dia que mais vou vender, o movimento tá intenso, quase não tive tempo de parar para o café.
Essa era a senha que Charles estava aguardando, seria hoje, o dia da sua independência financeira, o dia de apertar o magricela e levar a sacola.
Na hora de sempre o pequeno, magro e bigodudo funcionário recolheu todo o dinheiro das caixas, colocou na sacola e seguiu para o corredor com destino ao cofre. Charles já estava na gerência com alguma desculpa e assim que viu o magricela sair dos caixas, ele foi para o corredor.
Tudo estava normal, somente Charles suava e tremia, ele trabalhou como aviãozinho para o tráfico, mas nada era tão perigoso quanto o que ele faria naquele momento.
Bem mais alto que o magricela, Charles o imprensou na parede do corredor e tomou a sacola com todo o dinheiro.
O que o esperto do repositor não tinha notado era que havia uma câmera no corredor e tudo era visto direto no escritório do patrão.
Charles saiu do corredor em disparada, cruzou a rua e só foi parar quando já estava próximo ao quarteirão de sua casa.
Neste momento ele abriu o saco e viu a quantidade de dinheiro que havia dentro. Era muito dinheiro, seu plano agora era chegar em casa pegar umas roupas e sair da comunidade, deixando a poeira baixar.
O homem estava radiante, tudo tinha dado certo, em poucos minutos estaria longe dali. Assim que abriu o portão de casa, dois homens enormes estavam aguardando por ele.
- Charles, você está preso por roubo do mercado, ponha as mãos na cabeça.
Agora Charles está no presídio onde passará alguns anos, condenado por roubo. Sua mulher vem toda semana na visita e está sempre muito feliz, dizendo que apesar dele estar preso a vida dela e das crianças melhoraram.
- Eu estou aqui preso e você diz que sua vida melhorou?
- Mas é claro, meu amor. Agora eu tenho dinheiro para todas as despesas da casa e sem você para comer e beber, a comida dá e sobra.
- Mas o que você está fazendo para sobreviver?
- Eu? Nada, agora eu tenho um salário chamado Bolsa reclusão que é muito mais do que você ganhava lá no mercado, ou seja, enquanto você estiver preso, minha vida está feita. Acho até que vou no cabeleireiro toda a semana, disse a mulher com um sorriso de orelha a orelha.



Francisco de Assis D. Maél
Médico & Escritor

Outras obras do autor:
Compra-se vida – Ficção religiosa
Fragmentos de uma vida – Autobiografia
Áxis a síndrome sagrada – Ficção Científica
Missionários da saúde em ação – Orientação à saúde
MANA-YAM e a árvore de amigos - Infantil
Historinhas que ninguém lê - Contos
O dia da minha morte – Romance
Num piscar de olhos – Romance
Dívidas de gratidão – Romance
Senhor X – Romance

Um comentário:

Lúcia de Fátima disse...

Adoro seus textos. Não o conhecia. Encontrei por sorte quando buscava algo sobre BJ joias (tbm fui da piramide rsrsrsrs) daí vi o livro Fragmentos de uma vida.
Adorei o que escreveu a Dona Madalena, mulher admiravel. Sorvi cada frase da "amostra gratis" do livro, levada pela leveza e fluidez das idéias que acabam nos enredando para seguir lendo. Descobri este blog e agora não sossegarei enquanto não ler todos os textos.
Desde Santiago, Chile, te parabenizo. Saudade de ler coisa bonita em minha língua.
Brasil, acime de tudo.