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Dívidas de gratidão é um pequeno romance que
mostra a gratidão vinda daqueles a quem fizemos o bem. Os irmão
Flecha Sereno sofrem com drama familiar de sequestro na família.
Num ato de violência do dia a dia, um deles perde a
memória e vaga pela cidade em busca de informações sobre sua vida.
Um dos irmãos é dado como morto num acidente na
estrada, piorando a dor da família Flecha sereno. Até onde você
iria para ser grata? Você daria a sua vida para cumprir uma dívida
de gratidão?
1º CAPÍTULO
São Paulo capital. Hospital público São Francisco. Na sala de
descanso dos médicos da emergência três homens conversavam em
frente a uma televisão ligada. A sala não era grande, mas servia ao
propósito de afastar por algum tempo o médico do local de trabalho.
As paredes estavam sujas e manchadas, coisa que ninguém notava, pois
o importante era a TV e o ar-condicionado estarem funcionando.
Algumas poltronas velhas se espalhavam pelo local. Separado por uma
porta, um outro cômodo também era usado pelos médicos, era um
dormitório. Com algumas camas, esse dormitório era usado pelos
profissionais que alternavam o plantão no turno da noite, porém
todos eram acionados se houvesse necessidade.
Geralmente um grande hospital de emergência tem duas equipes
distintas. Uma equipe clínica, que avalia e trata os pacientes com
doenças em estado agudo. Outra equipe é a de trauma, que cuida dos
pacientes que sofreram algum tipo de lesão e necessitam de alguma
intervenção cirúrgica. Os médicos da equipe de trauma são os
especialistas da área cirúrgica, como neurocirurgião, ortopedista,
cirurgião geral e outros.
Aquele era um dos dias mais tranquilos do mês. Já estavam na metade
do plantão e ainda não tinham perdido nem um paciente. Um residente
em cirurgia geral estava na sala de trauma a fim de fazer os pequenos
atendimentos, enquanto que os outros descansavam e conversavam sobre
temas variados. Política de segurança pública era o tema da vez.
Um dos homens, o mais novo, dizia que a causa da violência urbana
estava numa polícia despreparada que causava mais violência que a
própria sociedade. O número de pessoas baleadas por armas da
polícia já era maior que as ocasionadas por marginais.
- Vejam só, atendemos tantas vítimas de arma de fogo que, segundo
uma pesquisa, já superamos as guerras do oriente médio.
- O lado bom dessa violência é que acabamos tendo uma grande
experiência com esses traumas, disse um moreno de jaleco impecável.
- Certamente é bom profissionalmente. Se conseguimos resolver esses
casos, as doenças normais se tornam uma prática simples, voltou a
dizer o mais novo.
- Ainda acho que todos deviam ser desarmados, inclusive a polícia,
retomou o moreno.
A porta da sala foi aberta e um homem de camisa xadrez, mangas
arregaçadas e de gravata anunciou:
- Está chegando um PAF (perfuração por arma de fogo), jovem de 16
anos.
O sistema de resgate por ambulâncias dos órgãos público era
controlado por uma central que buscava o hospital do SUS (sistema
único de saúde) mais próximo e que estivesse, no momento,
preparado para atender ao paciente resgatado. No caso que estava
ocorrendo, havia necessidade que o hospital tivesse um neurocirurgião
no plantão e era onde se encaixava o hospital São Francisco naquele
dia.
- PAF onde? Falou o mais novo.
- No crânio.
- É todo seu, Sereno, gritou o de jaleco impecável para o mais
velho que estava em silêncio, afundado em sua poltrona.
- Veio da comunidade? Quis saber o mais novo.
- Afirmativo!
- Vão dizer que foi bala perdida ou então que foi a PM que entrou
atirando para todos os lados.
Os três homens se levantaram e o mais velho que até aquele momento
não tinha dado sua opinião sobre o tema em discussão, falou:
- Ligue imediatamente para a sala de TC (tomografia computadorizada)
e a deixe pronta para usarmos. Vamos lá pessoal, vamos praticar o
que fazemos de melhor. Vamos salvar vidas.
Esta era a rotina de uma equipe de emergência de um grande hospital
público: aguardar que as pessoas se machuquem para poder correr
contra o tempo a fim de: primeiro, salvar suas vidas; segundo, salvar
os órgãos ou os membros afetados e por último salvar as funções
destes membros.
Dr. Roberto Sereno era um neurocirurgião muito competente, tinha
quase quarenta anos de idade e muitos deles dedicado à medicina. Ele
era divorciado de uma psicóloga e tinha uma filha de cinco anos. Dr.
Sereno era um profissional sério, mas com um metro e oitenta de
altura e fartos cabelos grisalhos ainda causava suspiros nas
enfermeiras onde trabalhava. Seu grande defeito era a prepotência,
isso fazia dele um homem solitário.
A equipe chegou à sala de trauma pouco antes da ambulância, que
trazia o paciente, estacionar em frente à entrada do hospital.
Sempre que isso ocorria, havia um grande movimento dos profissionais.
Uns corriam para buscar uma maca, outros preparavam os equipamentos a
serem usados na intervenção inicial e a equipe médica se preparava
com os equipamentos de proteção individual.
- Coloque-o aqui, apontou o Dr. Sereno com ar de superioridade assim
que chegou a maca com o paciente atingido por tiro, vamos
estabilizá-lo e depois fazer uma TC.
- Está com dois acessos venosos de bom calibre e em bom
funcionamento, gritou o enfermeiro da equipe providenciando de
imediato a verificação de pressão.
- Pressão? Pediu o Médico mais novo da equipe e que era um R3
(médico residente de 3º ano) de cirurgia geral.
- 100 por 70, gritou o enfermeiro.
- Vamos retirar toda a roupa dele para ver se há mais alguma
perfuração, falou o médico mais novo olhando para o enfermeiro.
Enquanto a equipe fazia o atendimento inicial, Dr. Sereno fazia a
avaliação dos sinais neurológicos preliminares e chegou a uma
conclusão com uma ordem:
- Temos Glasgow 5. Vamos entubá-lo, declarou o neurocirurgião.
Glasgow é uma escala neurológica que registra o nível de
consciência de uma pessoa após um traumatismo craniano.
Não havia mais nenhuma outra perfuração pelo corpo e em poucos
minutos o paciente era levado para a sala de exame para avaliar a
real situação da cabeça do jovem de 16 anos. O caso era grave,
porém toda equipe já estava acostumada com situações parecidas e
tudo era feito o mais correto possível para salvar a vida do
paciente. Assim que Dr. Sereno saiu da sala de exames, uma mulher de
uns quarenta anos, ruiva e algumas sardas pelo corpo interpelou o
médico.
- Doutor, falou a mulher chorando, ele não é traficante não. Meu
filho é um garoto direito, por favor, salve a vida dele.
- Senhora, falou o médico tranquilamente, mas com a voz firme, não
me interessa a situação social de qualquer pessoa que necessite de
atendimento. Para mim e minha equipe, seu filho é um paciente grave
que necessita de atendimento urgente.
- Por favor, doutor, salve o meu filho.
- Tente ficar calma, vamos fazer de tudo para tirá-lo dessa
situação. Agora me dê licença que vamos levá-lo para cirurgia.
Eu preciso salvá-lo.
- Obrigado doutor, vou pedir a Deus que ilumine seus caminhos.
- Queria ver Deus resolver isso aqui sem minha ajuda, falou baixinho
o médico para si mesmo e se dirigindo para o centro cirúrgico.
Foi uma cirurgia demorada e cansativa. Quase toda a equipe de trauma
foi envolvida na cirurgia. Dr. Sereno se sentiu diferente naquele
dia, estava mais ágil e ainda mais confiante. Com toda sua
experiência e com os exames realizados, o médico sabia que aquele
paciente, apesar da idade, estava envolvido de alguma maneira com o
tráfico de drogas, porém não cabia a ele julgar o comportamento do
jovem, mas tão somente o seu estado físico.
Tudo correu bem e o jovem precisaria de um bom tempo de recuperação
e com grandes chances de não apresentar sequelas graves. A mulher
ruiva estava de frente para o neurocirurgião quando ele deu o
resultado da cirurgia.
- Salvei o seu filho, disse ele com ar triunfante, a cirurgia foi bem
sucedida. O paciente está estabilizado e precisa aguardar alguns
dias para serem avaliadas as possíveis sequelas. No momento ele não
deve receber nenhuma visita, pois vai para o CTI para melhor
acompanhamento.
- Obrigado doutor, nunca esquecerei o que o senhor fez pelo meu
filho.
- Só fiz o que era minha obrigação senhora. Seu filho é forte e
vai se sair bem dessa, mas ele vai precisar de muito apoio e
provavelmente de muita fisioterapia.
- Tenho uma enorme dívida de gratidão com o senhor e nunca
esquecerei.
- Seu filho ficará no CTI por alguns dias em coma induzido, ou seja,
vamos mantê-lo dormindo. Agora me deixe ir que chegou outro
paciente. Adeus senhora.
Enquanto o médico se afastava com o nariz empinado, a pobre mãe
ficou a olhá-lo e agradeceu a Deus pela vida dele. Ela não tinha
sido verdadeira com ele e mesmo assim ele salvou a vida de seu filho.
Por inúmeras vezes ela pediu ao filho que se afastasse das más
companhias, porém ele se afundava cada vez mais no tráfico. Ela
tinha mentido para um homem bom e não tinha como se redimir, mas
Deus há de recompensá-lo pelo que ele fez por seu menino.
A emergência de trauma de um grande hospital público tem
basicamente a função de consertar os estragos que o próprio homem
faz a si mesmo e ao próximo. Com o tempo a equipe aprende a fazer um
bom trabalho rápido e prático sem perder a humanidade. Quem está
de fora não sabe o drama pessoal de cada componente que ali
trabalha, de cada médico, de cada enfermeiro e dos auxiliares
administrativos que fazem o “salvar vidas” valer a pena. Muitos
pacientes são salvos e não valorizam àqueles que se empenharam em
algum momento por sua vida, porém a maioria vê o esforço e
dedicação destes profissionais. Lembrar do benfeitor é coisa para
poucos e certamente a mulher ruiva seria um deles.
O plantão já estava terminando quando Dr. Sereno ligou para Joana,
a ex-esposa, dizendo que passaria na escola da filha e depois a
levaria para passear um pouco. Joana era uma mulher bonita nos seus
trinta anos de idade. Era psicóloga e tinha grande parte de seu
tempo ocupado com a profissão. Roberto e Joana estavam separados
desde o nascimento de sua filha. A ex-esposa teve um relacionamento
extraconjugal logo após ter se casado com o médico. Dr. Sereno
tinha uma relação conturbada com a psicóloga, pois suspeitava que
a menina não fosse sua filha. Lilian era uma menina esperta de cinco
anos, loira como a mãe e apresentava um sinal no pescoço em forma
de cruz. Estudava num jardim de infância e algumas vezes por mês, o
pai passava por lá com seu imponente Peugeot prata do ano e a levava
para passear. A menina, que não tinha noção dos problemas entre os
pais, adorava ir à pracinha e ficar no balanço.
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